Chico Brito viveu não sei onde no Ceará. Ele deve ter sido um homem perverso, inclemente, rigoroso no cumprimento da lei. Quando eu era criança, a simples menção de seu nome me apavorava. Eu e meu irmão, Renato Jorge, éramos muito travessos; para nos disciplinar, papai e mamãe nos puniam com rigor, mas antes ameaçavam: “Agora os dois vão entrar na lei do Chico Brito”. Assim começavam as sessões de tortura, cada qual mais tenebrosa que a outra. Em nome do Chico Brito, apanhei de cinturão, fio elétrico e varinha de marmelo. O pior flagelo vinha com uma mangueira de plástico que pendia de um filtro de parede.
Dizem, não sei se verdade, que Chico Brito batia na prole todo dia, e se justificava com um argumento inconteste: “Eu espanco mesmo quando não sei dizer por quê; mas eles sabem a razão porque estão apanhando”.
Cruel, mas verdadeiro. Horrível, mas inegável. Meninos, adolescentes, jovens, sempre têm culpa no cartório. Hoje, depois que completei cinqüenta anos, descobri que adultos também são indesculpáveis.
Aprendi também que a lógica do Chico Brito serve de fuzil nas mãos dos religiosos. Já cansei de ouvir sacerdotes afirmarem: “Vocês são pecadores e devem se arrepender caso queiram ser poupados da ira de Deus e das maldições do diabo”. Sem medo de errar alguns apontam o dedo e arriscam uma condenaçãozinha extra: “Logo, logo, seus pecados lhe alcançarão; submeta-se ou se prepare para a maldição que vem sobre a casa, filhos e empresa dos desobedientes”.
Será mesmo que a mensagem de Jesus de Nazaré precisa de ambientes carregados de culpa? A mensagem cristã se confunde mesmo com a visão mórbida e pessimista da condição humana, que se disseminou na Idade Média? Não há como anunciar Jesus sem esse pessimismo antropológico que descreve a história humana como indigna, infeliz e caída?
A leitura agostiniana do pecado de Adão e Eva, somada à visão neo-platônica que cinde o ser humano em corpo e alma, acabou levando teólogos e filósofos a acreditarem que o corpo é mau e que a alma é boa. Para eles, a humanidade vive em guerra, querendo satisfazer os desejos da carne, que não passa de lama. E a humanidade está perdida porque se recusa a desejar a “coisas santas” (entenda-se por coisas santas, sacrifícios, penitências, sofrimentos). Como as pessoas precisam do corpo para viver, da libido sexual para se reproduzir e dos apetites para dar gosto ao dia-a-dia, a luta começa perdida. Sim, para alguns religiosos, a humanidade vem ao mundo debaixo de condenação; “todos réus da ira divina”.
Acontece que Jesus nunca foi discípulo do Chico Brito. Quando contemplou o sofrimento das multidões, o Nazareno disse: “Eu os vejo como ovelhas sem pastor” – Marcos 6.34. Cristo não titubeou quando declarou: “As meretrizes vão entrar no reino antes dos sacerdotes” – Mateus 21.31. E Paulo, muito citado para legitimar a dureza do juízo sobre os pecadores, escreveu que “a bondade de Deus é que leva alguém a querer mudar”. Romanos 4.2.
O evangelho é boa notícia não porque se resume a anunciar que Deus se dispôs a amar os desgraçados. A notícia alvissareira do Evangelho alardeia que Deus não trata a humanidade com ódio. Ele quer a todos como filhos queridos, apesar das inadequações e, até, das impiedades. Deus não é antipático. No dia do nascimento de Jesus, ouviu-se no céu uma retumbante declaração: “Glória a Deus nas alturas, paz na terra aos homens (e mulheres) a quem ele quer bem”.
Deus prefere abraçar a chicotear, beijar a rejeitar, perdoar a castigar. Ele é mãe e pai, irmão e amigo, ajudador e advogado.
A lei de Chico Brito pertence ao mundo dos perversos; Deus não é cruel. Meus pais, coitados, não eram malvados, apenas mal informados sobre educação infantil. Mas como avô e pastor de uma comunidade de fé, tenho a obrigação de não repetir os seus erros.
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim
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